segunda-feira, 9 de abril de 2018

Surpresa em dose dupla



...Fechei a porta, andei em sua direção. De repente, eu não tinha mais palavras. Todos os meus planos, e até aquilo que eu não tinha planejado, tudo ficou enevoado. Eu não sentia mais a felicidade de antes, e por mais que olhasse para você, não conseguia decifrar o que teus olhos queriam me contar. Será que você já sabia da notícia que eu iria te dizer? Mas era impossível. Improvável até. Completamente improvável que, se você soubesse, não estivesse com sorrisos e balões, festejando o céu azul. E, também, claro, não tinha como ninguém saber além de mim. Não tinha como você saber se não fosse por mim. Porque tudo aquilo, toda nossa vida, nos últimos anos, tinha sido construída assim, dessa forma: nós dois primeiro, depois o mundo. Todas as decisões, todos os nossos planos: nós dois, depois o mundo. Mas tinha, ali, alguma coisa que eu não conseguia decifrar. Alguma coisa nos seus olhos, no silêncio dos móveis, no odor da casa, que parecia me dizer alguma coisa. Uma notícia ruim. 

Enlouqueci. 

Primeiro, pensei que nosso filho teria alguma deficiência, alguma má formação. Logo em seguida passei a pensar que 'tudo bem, nós iremos amá-lo de qualquer forma, e até mais'. Mas me dei conta que ainda era cedo. Pensei então que eu poderia ter abortado. Você estaria sabendo antes de mim, sabe-se lá porquê. Fisiologia nunca foi o meu forte. Mas aí, lembrei, a lógica, sim. Esse é o meu forte. E não havia maneira alguma de você saber que 1. eu tinha engravidado e 2. eu tinha abortado sem que fosse por mim. Recobrei a consciência, enquanto chegava já ao seu lado, sentado no sofá. Decidi que o que quer que fosse que estava transformando os teus olhos em tempestade, eu queria saber. Eu desejava saber, porque agora, mais que nunca, seríamos três. E teríamos amor e espaço suficiente para dividir o que quer que fosse. Nós dois, depois o mundo. Nós três, depois o mundo.

Sentei ao seu lado e, sem avisar, você desmoronou. Demorei a entender as suas palavras. Por um minuto, até esqueci que tinha uma notícia pra te dar. 

Agora, seríamos três. 

Me concentrei em cada ruído que você fazia, cada tentativa intempestiva de me fazer entender alguma coisa. Até que entendi."Mamãe. Morreu". 

Você desabou. 

Eu, que sempre falei sem parar, perdi as palavras. Sabia que não tinha o que dizer. Te embrulhei em um abraço e fiquei ali, esperando teu choro alçar voo e encontrar, no céu, o aconchego que você precisava. Sabia o quanto sua relação com sua mãe era importante pra ti. Sabia, mais que isso, o quanto todas as suas relações eram, inevitavelmente, um reflexo daquele carinho e daquela sintonia que você tinha com aquela mulher que anos atrás eu tinha conhecido. Com um ar de quem encanta passarinhos, ela havia me recebido em sua casa como se eu fosse, de fato, da família há muito mais tempo do que eu provavelmente lembraria. No dia em que eu a conheci, logo entendi todos os seus elogios e lembranças. Foi ali, também, nunca te disse, que eu me apaixonei mais e mais por ti. Dizem que a forma como um homem trata seus pais ou seus filhos dizem muito mais sobre ele que suas palavras ou suas promessas. Eu acredito. E ali, soube, ficar contigo era a promessa do companheiro que eu sonhava. 

Enquanto eu mesma me perdia nos meus devaneios sobre você, você devagar, levantou a cabeça que antes estava afogada em meus cabelos. Sorriu devagar, perguntou o que eu queria te dizer. Eu não tinha te dito que queria dizer algo, tinha? Eu não lembrava, mas mesmo assim tava bem consciente do quanto toda aquela situação era bizarra. Como eu iria te contar, ali, que enquanto você chorava pela perda da sua mãe, eu tinha, finalmente, me transformado em uma para o teu próprio filho? 

Não disse. Me calei. Não sei ainda se eu tinha dito que tinha algo pra te contar, mas não importava. Eu não iria te dizer. Não naquela hora. Não daquele jeito.

Mas, de alguma forma, como sempre, você me leu. E em meio a tantas lágrimas, você abriu um sorriso muito mais verdadeiro que eu poderia esperar. "Você. Vai. Ser. Mãe" - você disse. Entrecortado, assim, como quem não consegue acreditar. Abri um sorriso miúdo, confirmei com a cabeça, e vi as engrenagens da sua mente funcionando. "E eu vou ser pai!" - você constatou. Seu sorriso já não era entrecortado. Muito menos enevoado. Era verdade, aquilo. E por um momento, me dei conta novamente de que aquilo era mesmo verdade. Era real. Agora, seríamos três. 

Ficamos parados, não sei quanto tempo, deitados em cima do sofá, dando um tempo ao nosso tempo para que nosso mundo se ajustasse às novas configurações que estavam ali. Eu, você, Ralph, nosso bebê, a ausência da sua mãe.

Ficamos atônitos. Mas a única coisa que eu sabia era que independente de quem entrasse ou saísse das nossas vidas, ainda assim, ainda tínhamos nossos planos: nós dois, depois o mundo.

E que o tempo nos esperasse. 

A vida prega peças. (...) A vida é quem dita as regras.]