domingo, 9 de novembro de 2014

Casamento

[Já era quase dez horas. Eu não conseguia entender como as pessoas conseguiam falar em borboletas no estômago em um momento como aquele. Na minha, haviam dinossauros. Dragões. Hipopótomos em surtos epilépticos. O momento, enfim, havia chegado. Eu. Casando. Com você. Difícil de acreditar.

Dei uma última conferida nos últimos detalhes. Demorei um pouco, ainda, para escolher qual o batom que eu iria usar. Pensei em um vermelho, forte, para deixar registrado em todas as fotos o tamanho do meu sorriso ao teu lado, mas lembrei que você não é dado a cores chamativas. Fiquei com o nude. Simples. E bonito. Como a gente.

As batidas na porta anunciavam que a hora havia chegado. Faltava pouco menos de dez minutos. Nosso combinado era que não nos atrasássemos. Não nos deixaríamos adiar mais ainda a nossa felicidade. Até ali, 12 anos já haviam se passado. De encontros e reencontros. Nossos mundos em paralelo, fazendo curvas arrastadas, até que finalmente nos encontrássemos - de uma vez e para sempre.

Escutei as batidas, atenta. Sabia que era a hora, mas não podia deixar de fazer uma última coisa. Pedi para que esperassem. Do outro lado, estavam minha mãe, minha irmã, e duas ou três amigas. Aceitaram de prontidão, dizendo que tudo bem, era normal a noiva se atrasar. Mas eu juro, não era essa minha intenção. Eu não iria gastar nem um minuto a mais que o planejado. Só precisava fazer uma última coisa: uma oração.

Pedi a Deus e a todos os astros do universo que iluminassem nossos caminhos. Que nos deixasse fazer a vida - e cada dia - mais leve. Pedi que me desse a serenidade necessária para acalentar os teus dias com sorrisos. Com os meus melhores sorrisos. Que entre nós nunca faltasse uma única coisa: a cumplicidade de velhos amigos apaixonados. Que nos desse, também, a sabedoria necessária para que educássemos os filhos que, um dia, a vida nos daria de presente. Que não nos faltasse amor. Nunca. Em um único dia. E que não nos faltassem abraços. Nos bons e maus momentos.

Agradeci ainda por Ele ter colocado em minha vida não os homens dos meus sonhos, mas aquele que me tornou a realidade mais pura: você. E, antes que me alongasse mais que o necessário, ouvi novamente as batidas na porta. Faltavam apenas cinco minutos. Chegara a hora. E eu não iria me atrasar.

Desci as escadas e, descendo, não consegui enxergar batentes. Não via outra coisa senão a estrada que havíamos trilhado até ali. Me perguntava, desesperadamente, o que estava fazendo. Eu Casando. Com você.

Ao chegar à entrada da igreja, porém, e, olhando pro final do corredor, ver você: não tive outra certeza: era exatamente aquilo que eu queria para o resto da vida. Borboletas no estômago. Você.

(...)
A vida prega peças. (...) A vida é quem dita as regras.]

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Maria

Eu te chamarei de Maria.

Antes de você chegar, eu vou colorir o teu quarto com todas as cores que o amor puder pintar. Vou transformar em carnaval a tua chegada. Soltarei serpentinas no teu umbigo. E prometo brincar com o teu olhar, aonde quer que ele seja.

Antes da tua chegada, menina, eu vou cantar aos quatro cantos o quanto tu vai fazer do mundo um lugar mais bonito. Que tu vai chegar pra me transformar no meu melhor - e eu quero estar pronta pra isso. Não que eu te queira uma data na agenda. Mas te quero quando meu querer te puder. Te quero também quando tiveres um outro alguém pra rezar por ti. Pra te acolher nos braços, te fazer dormir. Te quero muito amada - sempre. Por mim e por todos. E, assim, tu serás.

Porque mesmo antes de te ver, eu já escuto o gotejar da chuva na tua risada. Antes mesmo de te ouvir, eu já vejo mil passarinhos fazendo morada em teus ouvidos. Porque não há outra coisa que não a natureza pra nos mostrar que foi Deus quem planejou cada pedaço de pão que vai marcar o teu caminho. E eu te prometo muitos sonhos também. Viu? Te prometo, também, não só te colocar pra dormir, toda noite, mas te levar pra voar.

Prometo te contar historinhas, te tirar pra dançar, te colocar no ritmo, te dar um ritmo e, depois, te deixar tropeçar. Sozinha, com os teus pés. Prometo não te segurar com muita força, nem apertar muito as tuas mãos. Vou te segurar somente pelas pontas dos dedos, como num ballet - só pra não te deixar cair. Mas, se tu caíres, não vou deixar o espetáculo se acabar. Porque você, menininha, nasceu para brilhar. Há de nascer para brilhar. Não nos holofotes - talvez -, mas no teu mundinho - aquele, feito de cabanas e caracóis.

Eu te prometo os doces mais doces, os sons mais bonitos, e um pouco de silêncio, também. Te prometo muitas coisas, mas, acima de tudo, o amor. Te prometo, também, um monte de risadas, para alegrar os teus dias, para embaralhar os teus cílios. Um passarinho - fazendo morada em tua janela. Vou te deixar andar pela casa, pintar mil mundos, brincar no quintal.

Com o correr dos dias, vou te esperar, ao meio dia, para que eu possa ver, no varal, o teu sorriso. E em cada estampa, a tua luz. Com o correr dos dias, vou te esperar, a meia noite, e em cada descoberta, prometo bordá-las em nosso manto infinito de retalhos e lembranças. Vou te bordar vestidinhos, menininha. E tu vais ser feliz.

Porque, quando tu vieres, eu te chamarei de Maria.






terça-feira, 9 de setembro de 2014

O verbo

Pela vida que nos escorre pelas veias. Pelos minutos que nos parecem destroçados. Pela chama da fogueira, ainda acesa. Pelo fósforo em fagulhas - a luz na madrugada. Pela lágrima que não nos molha a existência. Pelo nosso sorriso, costurado em linhas tortas. Pela paz que nos invade a cada melodia. Pelo cheiro de paz, exalado a cada passo. Pela incerteza que nos consume os dias pares. E pela saudade que nos transforma em numeral.

UM.

Pelo desengano ainda que sempre enganado. Pelo diagnóstico de uma vida entrelaçada. Pela certeza da história em cada porto. Em cada esquina. Pelos fios de prata em uníssono. Pela radiola ainda que emperrada. Pela caça - à vida. Pela garra - à alma. Pelo doce prazer de nos tornar doce a existência. Pela companhia. Por sermos todos.

UM.
DOIS
EM
UM
EM VÁRIOS

Por cada erro e cada falta. Por cada ausência ressentida. Cada tela vazia, branca, estupefada. Um caderno. Escrito. Em letras grandes.

Que é preciso
 - e sempre -
...



terça-feira, 19 de agosto de 2014

Eles não viam nada

Do alto da montanha, eles não viam nada. Também não sentiam o cheiro visceral que andava pelas redondezas. Não viam o medo estampado nos olhos de quem se assusta com a chuva. Sequer viam os tijolos que levantavam os móveis, a cada tempestade. Não escutavam a música alta que inundava o pátio, em plena tarde de domingo. Nem viam as cirandas, tampouco os corpos que se embreagavam com o suor de uma semana inteira de trabalho. Não viam as marcas nas paredes, que insistiam em lembrar que, ano que vem, a tempestade insiste em voltar. Também não viam o quarto-sala-e-banheiro resumidos a um só vão. Onde tantas vezes cabia tudo. E tão pouco. Não ouviam os gritos roucos à meia noite - de amor (ou não). Mas também não escutavam os barulhos de bala nos corredores, nem o silêncio retumbante do mal que se esconde em sirenes. Não viam as feridas, as cicatrizes. O caderninho de contas na venda ao lado. Não contavam as moedas ao fim do dia. Pra comprar o pão. E a possibilidade de um dia, um dia melhor. Não lidavam com paralelepípedos, ou mesmo a terra batida de uma rua sem saída. A vida. Sem saída. Sem final. Eles não viam. E, por não verem, não entendiam. Não viam a vida escondida em pedregulhos. Nem o prazer escondido nas esquinas. Passavam com seus carros - e não entendiam. Não viviam como quem vive o anteontem. Não viviam a dor de um amor interrompida. De pai. De mãe. Irmã ou irmão. Não sabiam do prazer das famílias numerosas. E do desprazer. Quando a morte chega. Quando a noite chega. Quando o fim chega. A cada dia. Como o fim da seta. Não sentiam a vida em guerra. E cada batalha. Do alto da montanha, eles não viam nada. E, do morro, quem via, se sentia isolado.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

que

Eu quero que você me tire do sério. E do tédio. Que, no fim, me seja o edredon em dia de temporal. Que me enlouqueça - mas não me faça perder a razão. Que me componha. Que não me faça promessas, que não me faça propostas, que não me faça esperar. Que seja sincero. Que me escreva em letras tortas a verdade mais crua. Que me perturbe.  Que não me venha com coordenadas. Viaje comigo. Me tire de casa. Me tire do óbvio. Me continue. Despeje seus sorrisos - em mim. E no mundo. E demore o seu olhar. Que dure o tempo indeterminado. Que me dê cochilos. E cochichos. Que me embriague. E me deixe lhe embriagar. Que me enebrie. E que amarre todas as minhas dúvidas. Em meus cabelos, nos seus, tanto faz. Que me emaranhe. Que nos torne um emaranhado. De coisas boas. Findas. Lindas. Que deixe a água escorrer. Que deixe o sol queimar. Em plena terça-feira. Que me guarde - em seus sonhos - mas que não deixe eu me perder. Que me pinte em cores vibrantes - e sutis. Que chegue em silêncio. Que fique em silêncio. E que aprecie um monte de ais, em tons azuis, invisíveis, ditos pelo arfar da nossa respiração. Que me costure delicadezas, mas que não seja assim, tão delicado. Que me traga a paz. Que aprecie o vento a balançar nossos cílios. E que a gente possa aprender a apreciar os temporais - lá fora. Enquanto, aqui dentro, a gente continua. A gente se continua. Mas que não seja eterno. Que me tire o roteiro. E as vontades. Que não seja nada daquilo do que eu quero. E, ainda assim, que eu te ame. Sem ponto final

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Se eu tivesse mais cinco minutos

Se eu tivesse mais cinco minutos, juro, não iria reclamar da tua barba mal feita. Ou dos teus defeitos mais banais. Desligaria o celular, te convidaria pra dançar. Ouviria cada palavra que por acaso não fosse dita. Destrancaria teus silêncios, engoliria tua luz, faria festa em teus sentidos. Se tivesse só mais cinco minutos, talvez, fosse eu quem falasse sem parar. Te diria todo o não-dito. E enxugaria minhas lágrimas com teu sorriso mal-feito. Te convidaria para um brinde à meia noite. Te daria lentilhas. Folha de louro. Uva passa. E, contigo, faria simpatias. Te confessaria que tropecei - mas me segurei em teus lençóis. E me nego a levantar da cama antes do sol se pôr. Não se pôs. Não em mim. Te levaria lá pra fora, pra te mostrar o arco-íris. Murmuraria clichês, falando baixinho no teu ouvido. Contaria o meu amor em forma de canção. De poema. De prosa. Mas só pra ti. Exclusivamente, pra ti. Não gritaria nossa felicidade. Muito menos teus silêncios. Respeitaria os teus suspiros. E teus monossílabos. Te convidaria para, depois, ver o sol nascer. E te convidaria para tantas coisas e tantos cantos e tantos ais. Que. Não teria ponto final. Te confessaria relicários. Em um cordão, carregaria nossos segredos. Para onde quer que eu fosse. E te levaria. Entre meridianos e luas cheias. Se eu tivesse mais cinco minutos, sopraria dos teus cílios qualquer que fosse o mal. E não deixaria que, entre nós, fizesse-se nenhum outro nó. Com meu dedo meio torto, faria labirintos em tua pele. E, depois, te convidaria para, comigo, atravessá-los. Seguraria a tua mão - e não te deixaria cair.

Se eu tivesse, somente, mais cinco minutos.

domingo, 11 de maio de 2014

você.
cheia de temperos, temperamental. 
é a minha primeira lembrança, meu primeiro amor. minha primeira paixão. é o meu grito sufocado, minha lágrima enxuta, minha força despedaçada. é o vôo que se segue, longe, rumo ao infinito. mas que, sem achar um ninho, volta. 

eu sempre volto.

eu sou você. metade de você, uma parte de você. você. inteira. em mim. você é o meu porto, onde eu sempre atranco. manhã, tarde e madrugada. tarde da madrugada, em meio aos pesadelos, ou nos sonhos mais bonitos. é você a mão que me segura, o passo que vai adiante, a dança que não acaba. você é a música. e o som.

é a minha vontade de viver mais, cada dia mais, e de ser melhor. você é o meu limite e minha meta. é o alvo que me guia. e a estrada onde eu piso, com a certeza de que ainda há caminho. com a certeza de que sempre há um outro caminho. a certeza de que sempre há uma nova história. e um novo amor, a ser desvendado todo dia, a cada dia, e de um jeito melhor.

você é a personificação do amor.

é a MINHA forma mais crua de amar.

mãe. 

domingo, 16 de março de 2014

Maria

Ela tinha olhos de girassóis e cílios de passarinho. Guardava, nas pequeninas mãos, um poço de saudade. Andava em moinhos - ligeiro - cavalgando em poesia. Falava alto, gargalhava, explodia sorrisos - em forma de estrelas. Mas morava ao lado do espanto.

Beirava o rio - e o mal.

Acordava todo dia com o tamborilar da chuva. Dormia, porém, ao som da voz terna de uma mulher cujas mãos não eram tão suaves assim - calejadas. Pela vida. A mulher que cantava, sorria e murmurava, baixinho: "Dorme, menininha. Que qualquer dia desses, acredita, o amor volta". E, em seus sonhos, ela acreditava.

Esperava, como quem espera incertezas. Escutava o som das batidas nas portas como quem escuta o primeiro tilintar do sino da noite de Natal. Esperança. Depois, ouvia os passos começarem a se distanciar - e imaginava. Esperava, esperava, esperava, como quem nunca iria cansar de esperar. Ela acreditava. E, por acreditar, o bem existia.

Ouvia o respingar da chuva, e lembrava. Do (seu) amor. Porque eis a melhor prova de amor que Deus nos dá. E, ela, também em silêncio, pedia, baixinho: "Papai do céu, por favor, por favorzinho. Deixa ele voltar". Depois, voltava a dormir.

Tinha perdido os movimentos, mas não a esperança. Fora fruto de um mal perdido. Uma bala, na verdade, que, perdida, a encontrou.

Era só uma menininha. E se chamava Maria.

(continua...)

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Sim?!

Talvez, um dia, por descuido ou por destino, o amor decida ficar. Quem sabe, assim, em meio a tantos "ais", ele finque sua raiz no nosso arco-íris sem cor. Ou quem sabe, eu não sei, (você sabe?), de repente, uma brisa fria venha nos aquecer da solidão que ficou (sem querer ficar).

Uma hora, talvez, por ironia do raiar do dia, você resolva aparecer. Assim, sem querer. E venha sem malas, sem mágoas, sem nada. E me traga somente - principalmente - o seu amor.

Sim?!


"Diga ao primeiro que passa
Que eu sou da cachaça
Mais do que do amor
Diga e diga de pirraça
De raiva ou de graça
No meio da praça, é favor
Mas fica

Diz que é pra tomar cuidado
Sou um desajustado
E o que bem lhe agrada, meu bem
Mas fica
Mas fica, meu amor
Quem sabe um dia
Por descuido ou poesia
Você goste de ficar"

(Chico - O Buarque)

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Sonho


eu te chamaria de anjo, não fossem todos os pensamentos sujos que tenho contigo. te colocaria uma auréola, te encomendaria asas, não fosse essa vontade louca, insana, estranha, de passar os restos das minhas noites ao teu lado. não fosse esse desejo de te acordar no meio da madrugada com um beijo em teu rosto, eu juro, eu arriscaria: perguntaria de onde você veio, como é a vida por lá, conversaria contigo até o amanhecer e, aí, novamente, faria amor contigo.

mesmo, talvez, você sendo um anjo.

eu te contaria todos os meus quereres, todos os meus sonhos, minhas dúvidas e incertezas, não fosse esse meu medo de te assustar. mas, por outro lado, também te falaria da paz que você me traz, de como é bom sentir o teu cheiro e como, com ele, eu faço ninho no vento, me acomodando em desassossego.

eu te falaria de como, pra mim, você é uma daquelas provas da existência de Deus. de novo, eu agradeceria, em silêncio, a Ele, por ter te colocado encostado no meu peito, em algum desses momentos carregados de magia que acontecem, vez ou outra, só pra nos enlouquecer.

eu te envolveria em exageros, gritaria aos quatro cantos do mundo o bem-querer, acreditaria que o mundo seria um lugar mais nobre só pelo fato de estarmos juntos - e unidos. no momento em que, enfim, você acordasse, eu deixaria de lado os subjuntivos, pretéritos e futuros, e tomaria, contigo, café em uma xícara de porcelana - e, a cada gole, te ofereceria um pedaço. logo depois, enfrentaria o dia a dia, e tudo o que ele nos trouxesse - tempestades, trovoadas, ou somente o pôr do sol no fim de uma tarde ensolarada.

mas estaríamos juntos - e unidos.

eu escreveria estrofes, te desenharia em nuvens, te chamaria para ler poesias num barzinho qualquer de esquina - cafona, assim como o nosso amor.

voltaria a compor músicas, acenderia velas e incensos, acordaria no meio da madrugada - novamente - só pra te despertar de um pesadelo qualquer. eu tentaria acrobacias, aceitaria as leis da física, do universo, inventaria outras regras, quebraria nossas normas, acordaria todos os vizinhos com o som da nossa música preferida tocando no vinil em pleno amanhecer.

eu te daria sorrisos, beijos e lembranças, em um sábado qualquer. de domingo a domingo, te chamaria, enfim, de amor. Enfim, assim, em letras maiúsculas, para todo mundo ver.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Chuva fina

veja bem -

é que eu tenho um cer-
to medo de ver
a
s
coisas
se
que-
bran-
do
,
e
s
v
a
z
i
a
n
d
o
.
.
.
com efeito.

(arquivo - 11/10/2013)

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Diálogo I

- Por que você me chamou aqui?
- Porque queria te ver.
- Você tava com saudade de mim?
- Não. De mim.
- Não entendi.
- Tava com saudade de mim.
- Essa parte deu pra entender. Mas por que você quis me ver?
- Por isso.
- Tá bem. Acho que já vou.
- Você quer beber alguma coisa?
- Você quer falar alguma coisa?
- Acho que não. Só queria te ver. Você quer beber alguma coisa?
- Qual a bebida mais forte que você tem?
- Mais forte? Por que? Você tá bem?
- Eu não queria te ver.
- E por que você veio?
- Porque achei que você tinha algo pra dizer.
- Como assim "algo"?
- Algo. Onde estão as garrafas?
- Que garrafas?
- Da bebida que você ofereceu.
- Mas você quer a bebida ou a garrafa?
- Queria engarrafar o que eu sinto por você e jogar bem longe. Mas, por enquanto, serve só a bebida.
- Eu não te entendo.
- Nem eu.
- Você não se entende?
- Também. Mas também não entendo você.
- Aqui, a bebida.
- Obrigada. Você não vai beber também?
- Acho melhor não. Se eu beber e você também, a gente sabe o que vai acontecer.
- O que vai acontecer?
- Você sabe.
- Eu não sei.
- Então vou beber.
- Bebe. Mas por que, mesmo, você quis me ver?
- Acho que também não entendo.
- E tem que entender?
- Dizem que sim.
- Mas eu não quero. Você quer?
- Acho que não.
- Coloca mais um pouco?
- A gente não devia fazer isso.
- Também acho que você não devia ter me chamado aqui.
- E por que você veio?
- Porque, no fundo, acho que também tava com saudade de mim.
- E quando isso vai passar?
- A saudade?
- Não, a gente.
- Não sei. Dizem que um amor engole o outro. Cadê sua taça? Ela ainda tá cheia. Por que você não tá bebendo?
- É que eu não quero te engolir.
- Ainda bem.
- Mas acho que é preciso. Existem caminhos que não deveriam ter se cruzado.
- O nosso?
- Acho que sim.
- Por que você bebeu tudo de uma vez? Assim você vai passar mal.
- Poeticamente falando, seria uma overdose de amor.
- Não. Se você continuar assim, o que vai acontecer é que você vai acabar no hospital, tomando glicose.
- Mas aí talvez o susto seja grande e eu largue isso de vez.
- Você tá falando de mim ou da bebida? Tá parecendo um alcoólatra.
- Dos dois.
- Por que você é assim?
- Assim como?
- Assim.
- Não sei.
- Você quer beber até esquecer que a gente um dia foi a gente?
- Acho que sim.
- Até o dia amanhecer?
- Acho que sim.
- E se eu te beijar?
- Eu não vou corresponder.
- Você lembra do nosso primeiro beijo?
- Faz tempo.
- Mas você lembra?
- Um pouco.
- Você tem saudade?
- Bebe mais, por favor.
- Você quer que eu te engula?
- Mais que isso.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Preciso desligar agora

"felicidade se acha é em horinhas de descuidos"
(Guimarães Rosa)

Eu hoje só te liguei porque queria te dizer um milhão de coisinhas. Então pára, pára e escuta. Presta atenção, presta bem atenção, tá? É que eu não tenho o costume de falar assim. Mas às vezes as palavras explodem dentro da gente, fazem festa, tiram a gente pra dançar. Hoje, eu quero que você seja o meu par. Tá?! Então escuta bem, presta atenção. Não me interessa se você não sabe dançar. Eu tenho certeza - eu sei que não tenho certezas de muitas coisas, não precisa me lembrar, mas essa eu juro que eu tenho - de que, juntos, a gente pode rodar todo o salão. Acredita em mim? Eu sei que você acredita. Seria bonito ver você costurando delicadezas na minha saia rodada. E eu adoraria te ver bailando por toda a madrugada. É isso.

Não, não é isso que eu queria te falar. Essa não era uma das coisinhas que eu tinha pra te dizer. É, então era um milhão e uma. 

Tá bem. Vou tentar não usar metáforas. Vou tentar. 

Lá vai:  uma das milhões de coisinhas que eu queria te dizer é que você planta sorrisos no meu coração com muito mais facilidade do que você imagina. Não é só no rosto, é no rosto e no coração. Eu queria muito que você soubesse disso. Queria te dizer que muitas vezes eu não sei o que te dizer porque não sei, mesmo. Não sei te explicar o que é inexplicável, eu acho. Eu acho que é inexplicável. Na verdade, isso, de explicar, eu deixo pra você.  Não encontrei uma palavra, ainda, por exemplo, que possa te fazer entender a paz e o batuque que você causa no meu peito, de uma só vez. Quando eu te vejo, meus cílios fazem festa, fica difícil de enxergar. Antes de te ver, faço como se faz quando a gente vai receber visita em casa: tento arrumar tudo, botar cada coisa  no seu lugar - só não tem jeito com ele, o coração. Desde que você chegou, ele insiste em ser mal-criado. E o pior de tudo (mas não conta a ele) é que eu gosto. Ele insiste em bater afobado, louco, desesperado, toda vez que fica sabendo que você tá pra chegar. Depois, quando você chega, meus olhos repousam bem nos teus e eu adoro ficar ouvindo cada palavra que você tem a dizer, cada história. É música para os meus olhos. Sabia? Sei que você sabe. Você é o barulho, eu sou o silêncio, e eu não poderia encontrar combinação melhor. Tá bem, eu sei que agora, nesse exato momento, eu não tô sendo bem um silêncio, mas, vai, deixa eu falar. Voltando, outra coisinha que eu tinha pra te dizer é que, quando você vai embora, fico te imaginando, sonhando, e te vejo como uma festa. Uma festa de carnaval, eu acho. Eu sei, eu odeio carnaval, mas não é por esse lado que eu quero ir. O que quero te dizer é que você, pra mim, é uma daquelas festas bem alegres, sabe? Você não tá entendendo? Tá, desculpa as metáforas.  É assim, ó: sabe quando você tá numa festa, de salto alto, e fica dançando até o dia amanhecer? Eu sei que você não usa salto, mas escuta: o que acontece é que você sabe que no outro dia vai amanhecer com muitas dores nas pernas, os pés cheios de calos, mas vale a pena e, por isso, você continua dançando. Pelo samba. É, o samba. Lembra que agora há pouco te falei das batucadas no meu coração? Então. Você pra mim é mais ou menos isso. Eu sei que você já já vai embora, sei que nossa história não completa nem uma página de um livro sem título, mas, mesmo assim, eu não canso de te querer-e-te-querer-e-te-querer. Não, eu não me importo com o fato de você ir embora. Quer dizer, não é que eu não me importe. Eu não me importo com isso da mesma forma como não me importo com o fato de te ver hoje ou não. E acho que é isso que faz o nosso amor bonito. A falta de expectativa, porque todas as expectativas são logo supridas. O desejo de fazer o outro bem. E feliz. E todas as coisas que você me faz e que eu quero te fazer também. Então, voltando. O que era, mesmo, que eu tava dizendo? Sim, o samba. A festa. Você é isso, pra mim, eu acho. Vez ou outra, no meio da noite, eu paro um pouco, fico olhando pro nada, e me vem uma tristeza, pelo saber que daqui a pouco a música vai acabar, o povo vai embora e, da noite, só vão restar as garrafas espalhadas pelo meio da sala e um ou outro cafuné pela manhã. Mas logo, logo, o som fica mais alto, eu esqueço disso tudo e te chamo, de novo, pra dançar. Mas não esquece de passar perfume, por favor. Não, não é que você sem ele não seja nada. Acho que é mais o contrário. Ele, sem você, não é nada. Já te disse que um dia desses vi outra pessoa usando ele, né? Senti o cheiro e lembrei de você. Não tive vontade de pular em cima da criatura e enchê-la de beijinhos, como sempre quero fazer contigo. Na verdade, quando senti o cheiro, lembrei au-to-ma-ti-ca-men-te de você. O que eu vou fazer agora? Sempre que sentir essa cheiro vou lembrar dessa história mal acabada. Não, não tô reclamando. Na verdade, me preocupa um pouco isso, às vezes, de não saber reclamar com você. Quer dizer, não é que eu não saiba reclamar, é que não tem do que reclamar. Até hoje, e já faz tanto tempo, eu não tenho um quê do que reclamar de você. A não ser o fato de você ter que ir embora. Mas não culpo você por isso. Culpo o mundo, Deus, Alá, seja lá quem for. Olha, tinha outra coisa pra te falar sobre isso de não saber reclamar de você, mas acabei de me lembrar de outra coisa agora. Me lembra depois de voltar a esse assunto, tá? O que eu lembrei foi de uma história de amor que eu li num livro um dia. Não, o livro não era sobre ESSA história de amor. Era sobre outra. Mas essa me chamou a atenção. É a história de Abelardo e Heloísa, você já ouviu falar? Não? Depois você procura saber melhor, que eu não posso mais demorar muito, meu horário de almoço tá acabando, mas é a história de um amor impossível. Sei que existem muitas, mas essa é diferente. É, diferente tipo a nossa. Não que a nossa se pareça com essa, mas, bem, o que me lembra muito você é que, nesse livro, lembro que a protagonista, quando relatava essa história, falava algo assim: que, pra ela, bastava saber, um dia, que o homem dos sonhos dela existe, que não precisava ter a posse dele. Saber que, em algum lugar no universo, ele existe, bastaria. Bem, isso não me basta e você não é o homem dos meus sonhos. O que eu queria era te levar pro cinema toda noite, depois sair pra jantar, depois te encher de carinho, te dar boa noite, te cobrir com meu lençol, e acordar todo dia ao teu lado. Brincadeira, não consigo querer isso com ninguém. Mas, sabe, me lembra você. Não entendeu? Dessa vez eu não vou tentar explicar, desculpa. Eu também não entendi o que eu quis dizer, mas... é mais ou menos isso. Desculpa, achoquemeapaixoneiporvocê. Ham? Não, não falei nada, não. Vem cá? Tá chovendo lá fora. Queria te beijar de novo embaixo da chuva. Gostei, sim. Muito. Como gosto de você. Sim, sobre o que eu tinha dito de não reclamar com você. É isso. Não achei ainda um defeito insuportável. E, sério, eu já devia ter encontrado. É, isso é bem sério. Já dava tempo de ter encontrado. Olha, tenho que desligar, eu acho. Não, não acho, tenho certeza. É que ter certeza me assusta, mas, é, sobre ter que desligar, eu acho que tenho certeza. Mas, antes, queria te pedir uma coisa. Sei que a passagem já tá comprada, sei que logo logo você se vai. Não, não dá pra esquecer. Eu não consigo. Sou louca, lembra? Neurótica, surtada, sei lá. Enfim, não dá pra esquecer. Mas o que eu queria que você me prometesse é que a gente vai aproveitar cada minuto desses teus últimos dias aqui. Pode ser? Por favor? Me acorda, amanhã, com beijinhos, como todas essas manhãs? E eu te prometo te levar pra tomar café, pra tomar banho, pra onde quer que eu for.

E, olha, de verdade, pra onde quer que eu for, pro resto da vida, você vai tá comigo. É, no meu coração. Acho que você marcou. Um pouquinho, não fica muito convencido.
Eu acho que eu te amo, é isso. É, acho.
Preciso desligar agora.