terça-feira, 19 de agosto de 2014

Eles não viam nada

Do alto da montanha, eles não viam nada. Também não sentiam o cheiro visceral que andava pelas redondezas. Não viam o medo estampado nos olhos de quem se assusta com a chuva. Sequer viam os tijolos que levantavam os móveis, a cada tempestade. Não escutavam a música alta que inundava o pátio, em plena tarde de domingo. Nem viam as cirandas, tampouco os corpos que se embreagavam com o suor de uma semana inteira de trabalho. Não viam as marcas nas paredes, que insistiam em lembrar que, ano que vem, a tempestade insiste em voltar. Também não viam o quarto-sala-e-banheiro resumidos a um só vão. Onde tantas vezes cabia tudo. E tão pouco. Não ouviam os gritos roucos à meia noite - de amor (ou não). Mas também não escutavam os barulhos de bala nos corredores, nem o silêncio retumbante do mal que se esconde em sirenes. Não viam as feridas, as cicatrizes. O caderninho de contas na venda ao lado. Não contavam as moedas ao fim do dia. Pra comprar o pão. E a possibilidade de um dia, um dia melhor. Não lidavam com paralelepípedos, ou mesmo a terra batida de uma rua sem saída. A vida. Sem saída. Sem final. Eles não viam. E, por não verem, não entendiam. Não viam a vida escondida em pedregulhos. Nem o prazer escondido nas esquinas. Passavam com seus carros - e não entendiam. Não viviam como quem vive o anteontem. Não viviam a dor de um amor interrompida. De pai. De mãe. Irmã ou irmão. Não sabiam do prazer das famílias numerosas. E do desprazer. Quando a morte chega. Quando a noite chega. Quando o fim chega. A cada dia. Como o fim da seta. Não sentiam a vida em guerra. E cada batalha. Do alto da montanha, eles não viam nada. E, do morro, quem via, se sentia isolado.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

que

Eu quero que você me tire do sério. E do tédio. Que, no fim, me seja o edredon em dia de temporal. Que me enlouqueça - mas não me faça perder a razão. Que me componha. Que não me faça promessas, que não me faça propostas, que não me faça esperar. Que seja sincero. Que me escreva em letras tortas a verdade mais crua. Que me perturbe.  Que não me venha com coordenadas. Viaje comigo. Me tire de casa. Me tire do óbvio. Me continue. Despeje seus sorrisos - em mim. E no mundo. E demore o seu olhar. Que dure o tempo indeterminado. Que me dê cochilos. E cochichos. Que me embriague. E me deixe lhe embriagar. Que me enebrie. E que amarre todas as minhas dúvidas. Em meus cabelos, nos seus, tanto faz. Que me emaranhe. Que nos torne um emaranhado. De coisas boas. Findas. Lindas. Que deixe a água escorrer. Que deixe o sol queimar. Em plena terça-feira. Que me guarde - em seus sonhos - mas que não deixe eu me perder. Que me pinte em cores vibrantes - e sutis. Que chegue em silêncio. Que fique em silêncio. E que aprecie um monte de ais, em tons azuis, invisíveis, ditos pelo arfar da nossa respiração. Que me costure delicadezas, mas que não seja assim, tão delicado. Que me traga a paz. Que aprecie o vento a balançar nossos cílios. E que a gente possa aprender a apreciar os temporais - lá fora. Enquanto, aqui dentro, a gente continua. A gente se continua. Mas que não seja eterno. Que me tire o roteiro. E as vontades. Que não seja nada daquilo do que eu quero. E, ainda assim, que eu te ame. Sem ponto final