domingo, 14 de fevereiro de 2016

Havia nascido mulher, por acaso

Ouvia o barulho da porta como quem ouve fantasmas; assistia à fresta entreaberta como quem vê roídos. Pisava em vidros - em casa. Esmagava seus pés a cada vez que via seu marido adentrar sua vida. Engolia em seco - aos prantos. Orbitava uma vida que deveria ser sua. Poderia ser sua. Mas - infelizmente, pensava ela - não era. Infortúnio do destino. Sua sorte em outras cartas.

Escutava aos chamados como quem segue em cortejo fúnebre; via suas roupas sendo jogadas ao chão como quem se despe da esperança. Caminhava em desalinho - na cama. Deitava em lençóis que tantos outros já viram. Que tantas outras já sentiram. Sua vida virara música em marchinha de carnaval. Sua folia em outras carnes. Em outros carmas. No prostíbulo.

Atentava à campainha como quem escuta - de longe - a felicidade; olhava aquelas fotos como quem ainda não se despedira. Olhava pela rua - à porta. Esperava pelo pai que jamais voltara. Sentia o cheiro do seu colo a cada suspiro. Ansiava pelas suas cócegas ao menor estalo. Lembrava-se dia e noite do primeiro homem de sua vida.

Haviam nascido mulher, por acaso. E com azar, com certeza. Em uma sociedade machista e hipócrita, para quem ama. Em uma sociedade difícil e impassível, para quem vive.

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